
O Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) publicou, em 9 de junho de 2025, um memorando de suma relevância para o cenário global de compliance e anticorrupção.
Assinado por Todd Blanche, Vice-Procurador-Geral doa EUA, o documento detalha novas diretrizes para investigações e ações com base na Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), alinhando-se à Ordem Executiva 14209, emitida pelo presidente norte-americano, Donald Trump, em fevereiro deste ano.
Na prática, o DOJ passou a condicionar o início e a continuidade de investigações à observância de critérios estratégicos que priorizam interesses nacionais dos EUA.
A mudança representa um redirecionamento expressivo no enforcement da FCPA e exige uma reavaliação cuidadosa por parte de empresas com operações internacionais – inclusive brasileiras.
Contexto político e jurídico da Ordem Executiva 14209
A Ordem Executiva 14209, intitulada “Pausing Foreign Corrupt Practices Act Enforcement to Further American Economic and National Security” (Suspender a aplicação da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior para promover a segurança econômica e nacional dos Estados Unidos), suspendeu temporariamente, por 180 dias, o início de novas ações de enforcement da FCPA. O objetivo declarado é evitar que a lei seja aplicada de forma excessiva ou contrária aos interesses econômicos e geopolíticos dos EUA.
Essa diretriz se insere em uma estratégia mais ampla do atual governo de priorizar a competitividade das empresas norte-americanas e restringir intervenções jurídicas extraterritoriais que possam comprometer o que consideram soberania empresarial ou afetar adversamente negociações internacionais legítimas.
Principais diretrizes do novo memorando do DOJ
O memorando assinado pelo Deputy Attorney General detalha os critérios que deverão orientar promotores federais na avaliação de casos novos e pendentes sob a FCPA. Entre os pontos mais relevantes, destacam-se:
- Suspensão de novas investigações ou ações de enforcement por 180 dias, salvo autorização expressa de altos escalões do DOJ.
- Foco em condutas com impacto direto nos interesses dos EUA, especialmente em segurança nacional e economia.
- Reavaliação de todos os casos pendentes, com base nos novos parâmetros estabelecidos.
- Orientação explícita para que promotores evitem a abertura de investigações sobre práticas de negócios de baixo valor ou rotineiras.
Critérios de priorização: foco em cartéis, segurança nacional e prejuízos aos EUA
O memorando indica que a aplicação da FCPA será seletiva e orientada por riscos concretos aos Estados Unidos. Os critérios centrais para início ou continuidade de investigações incluem:
- Suborno associado a cartéis e organizações criminosas transnacionais (TCOs), especialmente aqueles designados como ameaças à segurança nacional.
- Corrupção que afete setores estratégicos ou infraestrutura crítica dos EUA.
- Prejuízo econômico identificável a empresas ou cidadãos norte-americanos, inclusive por perda de competitividade decorrente de corrupção internacional.
- Condutas graves, com dolo evidente, uso de mecanismos sofisticados de ocultação, obstrução de justiça ou pagamentos substanciais.
Esses critérios estabelecem um novo filtro jurídico e político para o enforcement da FCPA, voltado a proteger os interesses econômicos e diplomáticos dos EUA, e não mais a uma abordagem ampla ou universalista da lei.
Implicações para empresas e programas de compliance internacional
A nova política de enforcement exige atenção redobrada de empresas multinacionais – em especial, daquelas que mantêm relações comerciais com entidades públicas ou privadas nos EUA, ou que utilizem o sistema financeiro norte-americano em suas transações.
Com a priorização de casos envolvendo TCOs, setores estratégicos e danos a empresas americanas, os programas de compliance precisarão ser atualizados para refletir:
- Avaliações de risco com base nos novos parâmetros do DOJ.
- Monitoramento de relacionamentos com agentes estatais em regiões de risco.
- Fortalecimento de mecanismos internos de investigação e resposta a indícios de corrupção em mercados sensíveis.
Além disso, práticas rotineiras ou de baixo valor, que antes eram foco de autodeclarações e investigações voluntárias, poderão deixar de ser objeto de atenção prioritária – mas sem prejuízo de responsabilização por outros órgãos, inclusive internacionais.
Impactos na cooperação jurídica internacional e investigações conjuntas
Um dos efeitos colaterais mais relevantes do novo memorando é o potencial impacto sobre mecanismos de cooperação jurídica internacional. O Brasil, historicamente um parceiro relevante dos EUA em matéria anticorrupção, pode observar uma retração no número de investigações conjuntas ou na efetividade da colaboração em casos com conexão americana.
Além disso, a reorientação da FCPA pode levar a um reposicionamento de órgãos de enforcement de outros países, que por vezes espelhavam seus parâmetros investigativos nas práticas do DOJ. A ênfase nos interesses econômicos nacionais e a seletividade do enforcement podem gerar tensões diplomáticas ou lacunas de responsabilização em casos de corrupção transnacional.
Reavaliação de casos pendentes e riscos para empresas brasileiras
Empresas brasileiras envolvidas em investigações relacionadas à FCPA devem se atentar à revisão interna que o DOJ está conduzindo, com base nos novos critérios. Casos que não envolvam risco concreto à segurança nacional dos EUA, ou que não tenham causado prejuízos identificáveis a cidadãos ou empresas americanas, poderão ser encerrados, arquivados ou sofrer mudanças na condução.
No entanto, isso não significa anistia ou blindagem. Empresas envolvidas com cartéis, corrupção em setores estratégicos ou que tenham praticado atos dolosos relevantes permanecem no radar da autoridade norte-americana.
Portanto, é fundamental que assessorias jurídicas e áreas de compliance monitorem continuamente os desdobramentos da política externa e regulatória dos EUA, de modo a ajustar estratégias de defesa e programas de integridade de acordo com as novas diretrizes.
Considerações finais: o futuro da FCPA sob a nova política americana
O memorando de 9 de junho de 2025 marca uma inflexão importante na política de enforcement da FCPA. Trata-se de uma diretriz que busca equilibrar o combate à corrupção internacional com a proteção da soberania econômica e da segurança dos Estados Unidos, conferindo maior previsibilidade e seletividade às ações do DOJ.
Para empresas e profissionais da área de compliance, o cenário demanda recalibragem de riscos, ajustes regulatórios internos e maior articulação internacional, inclusive com escritórios e parceiros estratégicos em Washington e Nova Iorque.
Mais do que nunca, o compliance internacional deixa de ser apenas um conjunto de boas práticas: torna-se uma ferramenta de gestão geopolítica e de blindagem empresarial diante de um enforcement cada vez mais sofisticado e estratégico.